quarta-feira, 17 de março de 2010

Texto da Coluna "Rio acima" do Jornal do Brasil - Rio de Janeiro ...

Perversidade contra dois jogadores de futebol

15/03/2010 - 20:38

por

Migliaccio

As últimas "notícias" veiculadas por parte da grande imprensa sobre dois jogadores de futebol de origem humilde mostram mais uma vez o quanto este país, este nosso povo deseducado, é elitista e hipócrita (aliás, o ser humano em geral hoje pensa e age assim em quase todo o mundo, salvo honrosas exceções).


Primeiro, pegaram Adriano Imperador, craque do Flamengo e da Seleção Brasileira, para Cristo. O motivo? Ele teve uma briga pública com a noiva numa favela. Na favela onde nasceu e foi criado, diga-se, até descobrir que o destino lhe havia sorteado uma megasena, dando-lhe o dom de jogar bem o futebol.


Adriano _ ou melhor, sua vida particular _ virou manchete. Como se fosse o único ser humano famoso e rico a se envolver em barracos. Quantos barracos de atrizes de novela, diretores de cinema, políticos e empresários a grande imprensa deixou debaixo do tapete nas últimas décadas?

Não era conveniente publicar... ainda mais na base do "ouvi dizer"


Mas, como se trata de um negro com pouco estudo, a execração pública está liberada. Afinal, se Deus não fosse camarada com ele, Adriano estaria numa esquina dessas defendendo o almoço do dia como flanelinha. Ou dando duro debaixo do sol como auxiliar de pedreiro. Ou até montando guarda numa boca-de-fumo com uma arma na mão. Quem saberá qual teria sido seu destino? Adriano é rico hoje, mas ainda é um favelado sobre quem achamos que podemos tripudiar ao menor escorregão. Adriano escorrega, nós não.


No último domingo, um jornal publicou que o craque promove festas de arromba com prostitutas e animais. Isso mesmo, animais. Se for mesmo verdade (porque o jogador deveria superar seu complexo de vira-lata e ir à Justiça para que provem isso), só quem deve se preocupar é a Sociedade Protetora dos Animais. Nào há uma declaração assumida na suposta reportagem. Acusam Adriano de promover aberrações, mas ninguém tem coragem de dar o próprio nome. "Dois jogadores", diz o texto, contaram a história ao repórter. "Um empresário" confirmou. Isso é o bastante para atacar a hora de uma pessoa? Uma boa fofoca? Hoje, no Brasil, é.


A vida privada de Adriano, por mais estranha que possa ser, não é mais dele, é de todos os brasileiros, que, parece, nada têm de mais importante com que se preocupar.

Ah, têm sim, o Big Brother Brasil...


No domingo à noite, foi a vez de Vágner Love, outro jogador do Flamengo, ser pregado na cruz. Filmaram o rapaz chegando a uma favela em meio a traficantes armados. Descobriram a pólvora? Ninguém sabia que na maioria das comunidades ainda reina o crime organizado? Agora, vão chamar o Vagner Love para depor (porque alguns adoram entrar na onda da TV). Teve um engravatado que apareceu na televisão dizendo que o jogador não deveria frequentar aqueles lugares. Poxa, mas ele nasceu ali, ali estão seus parentes, seus amigos de infância. Alguns viraram bandidos, a maioria não. Ali na Rocinha estão suas raízes. Fazer o quê?

Queriam que o atacante desarmasse os criminosos? Queriam que ligasse para a polícia e dissesse que estava cercado por traficantes? Se o delegado o chamou para depor, tem que exigir explicações também de todos os moradores da comunidade, que convivem com aquela realidade diariamente. E dos políticos, que, em época de campanha, sobem morros após seus assessores negociarem com as quadrilhas o salvo conduto.


Hipocrisia, preconceito acusar apenas os jogadores, que, pelo menos, não estão ali para fazer demagogia e pedir voto.


Quando Vágner Love nasceu, já cantavam na Rocinha os fuzis e metralhadoras. A polícia sabe disso há décadas, não precisa convocar o artilheiro para se informar.


Onde estava o delegado que convocou Love para depor quando Michael Jackson teve que pedir permissão aos traficantes do Santa Marta para gravar um clipe no alto do morro? Aliás, quem fez a segurança da equipe de Jackson e do diretor Spike Lee lá em cima foram os traficantes, como a mídia cansou de noticiar na época...


Mas Vágner Love é um negro brasileiro, mais negro que Adriano. Tem dinheiro, mas não tem berço nem sobrenome.


Seu sobrenome é Love.


Então podemos cair de pau em cima, dando vazão a toda a nossa crueldade, a toda a nossa mediocridade. Provas? Quem precisa delas?


Se os dois forem criminosos, que a polícia os prenda e um juiz os condene. O que se discute aqui é a abordagem jornalística feita na mídia das tais festas de arromba (a denúncia da moto foi posterior) e do vídeo do jogador Love na favela. Elitista como sempre.


Por essas e outras, às vezes, me envergonho de ser jornalista. Mais: de ser humano....



Nenhum comentário: