terça-feira, 21 de abril de 2009

O primeiro Maracanã ...

O primeiro Maracanã


por Alexandre Fernandes

Terminava o ano de 1963, já ia dezembro pelo meio. O movimento das ruas nem de longe espelhava a frenética instabilidade desenvolvimentista que as novas décadas impunham e naquele dia havia um ar de expectativa em tudo e em todos. Algo de muito importante estava para acontecer, indicavam evidências fortes, só restava saber o quê.

Num apartamento de conjunto habitacional do subúrbio podia se sentir esse clima de uma forma tão concreta quanto o amálgama de cada bloco dos prédios. Os fluídos eram permanentes, inesgotáveis e a vida sublimemente metafísica.
A princípio, um domingo como tantos outros. Alvorada festiva dos fogos de artifício saúdam o padroeiro do dia ou anunciam o time de futebol da várzea local, quem sabe ambos. O dia, contudo, nasceu diferente. Daqueles em que se acorda com um peso no peito, um nó na garganta, a sensação de que o mundo será outro quando se voltar à cama para encerrá-lo.
Como não se deve fugir de responsabilidade, o menino criou forças, se levantou e iniciou a rotina dominical. Obrigatória e rápida passada pelo banheiro, café da manhã tomado por decreto e lá estava ele dividindo o jornal com o pai, se esgueirando mais pelas letras que tanto lhe fascinavam do que pelas notícias que aqueles atraentes símbolos compunham.
A preocupação estampada nos olhos semicerrados do pai ao ler as manchetes sinalizava o que o bater mais apressado do coração infantil já sabia: tratava-se de um momento especial.
Antes mesmo do tradicional e respeitoso bom dia, veio a confirmação de que a data seria marcante.
- Filho, hoje você vai conhecer o Maracanã. Vamos ao Fla x Flu que decide o título para você ver bem de perto o Fluminense ser campeão!
Para uma criança apaixonada por futebol soou mais do que um convite, era uma convocação. Pulou do sofá como se já estivesse atrasado e foi contar a novidade à mãe. Na verdade não se sentia confortável por deixá-la em casa, pois aos domingos sempre saíam todos juntos. Porém, era razoável que ele entendesse que o tumulto de uma partida de futebol não combinava com mulher grávida, ainda mais uma final de campeonato. Por outro lado, seria inseguro para ela e não seria para ele?
Enfim, a decisão que interessava era a do campeonato e o entusiasmo dele era maior do que os seus questionamentos. Tratou de separar a sua melhor roupa, considerando a importância do compromisso. Foi difícil convencê-lo de que um jogo de futebol, especialmente um Fla x Flu que resolveria o campeonato, não exigia trajes formais. A fase seguinte foi uma penosa e angustiante espera, uma vez que o jogo aconteceria somente à tarde.
O transcorrer daquela manhã pareceu uma eternidade e a ansiedade um enorme combustível para um rico imaginário. Sua mente repetiu todos os lances gravados nas locuções do rádio que o pai costumava ouvir. A exatidão das descrições lhe povoava a memória como um filme que só ele podia assistir. Milhares de pessoas, ídolos em campo, lances espetaculares, defesas fantásticas dos goleiros, gols, comemorações junto à torcida. Muito mais rápido do que imaginava, chegou a hora de sair.
Um percurso impressionantemente curto, porque vencido pela rapidez de sua curiosidade, e chegaram ao estádio. Era muito maior do que os seus sonhos, um colosso diante de um microscópico visitante. Muita gente, uma multidão se aglomerando e nem por isso se sentiu incomodado. Era como se fossem todos parte de um mesmo corpo, uma entidade única, a imensa massa de adoradores e o concreto do templo.
Após ultrapassarem os corredores de acesso, em meio ao turbilhão de clamores ecoados nos túneis escuros, a claridade revelou o campo. Passado o susto, a sensação de papéis invertidos foi inevitável, porque até a bola rolar são os torcedores que fazem o solo numa ópera popular. As dimensões lhe assombravam. Tudo gigantesco, dos cânticos da torcida à arquitetura do local.
Sentado nos ombros do pai, ele analisava o gestual, a aflição e as expressões de quem estava mais próximo. Observava também a movimentação dos craques, o balé refinado dos dribles e das jogadas de efeito, pensou até ouvir o baque surdo de cada chute. Com o início do jogo uma onda de tensão envolveu a todos. A emoção tomou conta do garoto de tal forma que ele entrou em êxtase. De repente, despertado do transe que o manteve isolado, a torcida explodiu e ele julgou ter visto um gol. Engano dele, o jogo terminara e a maioria dos presentes vibrava intensamente. Por instinto ou por catarse ele se integrara à comemoração. Dançava nos ombros do pai com o desembaraço de um veterano de muitas conquistas. Foi quando o pai chateado o repreendeu, alertando que o campeão não era o Tricolor das Laranjeiras. Ótimo, ele não torcia mesmo pelo Fluminense! O seu coração estava tão feliz que era impossível estar equivocado. Foi iniciado como rubro-negro naquela tarde em que um sonho de infância se tornou realidade e ele conhecera o maior estádio de futebol do mundo.
- Pai - confessou num misto de alegria e alívio - eu sou Flamengo.
- O que é isso, filho? Nós torcemos pelo Fluminense!
- Você torce, pai. Eu torço por esse time que tem uma torcida que quase enche o estádio sozinha e não precisa ganhar nem fazer gol para ser campeão! MEEENGOOO!
E voltaram para casa marcados de maneira irreversível pelo impacto daquele dia inesquecível para os dois. Até morrer o pai não deve ter se conformado por ter escolhido justo aquele jogo para a estreia do filho como torcedor. O Fla x Flu que decidiu o campeonato de 1963, um jogo tão significativo quanto a decisão que o menino resolvera tomar, se opondo ao maior ídolo, no dia do seu primeiro Maracanã...

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